Num tempo em que a terra era mais do que solo — era ventre, casa e semente — nasceram os baldios, espaços sem dono e, por isso mesmo, pertencentes a todos.

Eram as terras onde o rebanho pastava livre, onde a lenha era apanhada com cuidado, e onde o silêncio das montanhas falava mais alto do que a posse.

Os baldios não são terras abandonadas. São terras partilhadas, como um pão de forno antigo que se reparte em fatias iguais por quem chega com fome e respeito. E é aí que entram os compartes.


Chama-se comparte a quem pertence, não por escritura ou herança de sangue, mas por raiz e pertença ao lugar. São homens e mulheres do povo, que vivem em comunhão com o território onde nasceram ou escolheram viver. São os vizinhos que conhecem o ritmo das estações, o caminho da água entre os penedos, e o som que a terra faz antes da chuva.

Não têm títulos, mas têm responsabilidades. São guardiões da terra comum, sentinelas de um modelo de gestão comunitária que resiste ao tempo — e ao esquecimento.

Num mundo que tende a medir tudo por valor de mercado, os compartes lembram-nos que há coisas que só têm valor porque são partilhadas.

O baldio é isso mesmo: um espelho do coletivo, onde cada passo dado é também pelo outro. O pasto alimenta não apenas o gado, mas a tradição. A floresta não serve só para cortar madeira, mas para manter o equilíbrio entre homem e natureza.

A terra não se gasta quando é bem cuidada; ela multiplica-se em histórias, em laços, em futuro.

A gestão dos baldios, feita pelos compartes reunidos em assembleia, é um exemplo vivo de democracia direta. Cada decisão — desde permitir o corte de árvores até ceder um pedaço para cultivo, ou pastoreio — é tomada com base no consenso, no diálogo e na escuta. Não há hierarquia senão a da sabedoria do grupo.

Este modelo, embora antigo, é profundamente moderno. Em tempos de crise climática, desflorestação e abandono rural, os compartes oferecem uma lição preciosa: o território pode — e deve — ser gerido com o coração da aldeia e a cabeça do futuro. Nós sabemos que a terra, quando é de todos, obriga a um cuidado redobrado. Porque quem cuida do que é comum, cuida também de si e dos outros.

A ciência confirma o que os compartes sempre souberam: a gestão comunitária dos recursos naturais é eficiente, resiliente e sustentável. Estudos mostram que baldios bem geridos por comunidades locais têm níveis superiores de biodiversidade e menores índices de degradação. A floresta partilhada arde menos. O terreno usado com respeito dura mais.

Os baldios são as nossas terras comunitárias desde sempre geridas por quem em Soajo vive para a pastagem, agricultura , floresta integradas nos sistemas agrícolas de subsistência, amplos espaços rurais caracterizados pela maior ou menor presença de recursos naturais e paisagísticos, cujo uso e gestão estão sujeitos aos compartes, são por natureza o resultado da interacção entre o sistema social criado pelas comunidades instaladas nas montanhas e os sistemas naturais que as envolvem. O uso do solo para produção dos meios de subsistência, nomeadamente a pecuária, é uma realidade antiga associada à transição do nomadismo para um modo de vida sedentário que, até certa altura, assumiu contornos de subsistência e de sustentabilidade.

Ao longo de muitos anos os baldios constituíram uma base da subsistência dos Soajeiros. Ainda que sem base legal constituída, estes terrenos estavam desde há séculos entregues ao uso do povo da Serra, sobretudo para pastoreio do gado e recolha de recursos básicos à sua sobrevivência.

A melhor defesa dos baldios é a sua gestão comunitária dos bem comuns, e o seu eficiente uso não só para as suas comunidades locais, como dada a presente condição climatica, os baldios tem um papel determinante para a manutenção da biodiversidade e gestão da paisagem , com recurso aos habitos e costumes ancestrais dos povos serranos .

No fundo, os compartes são como as raízes das árvores centenárias que guardam: estão lá, discretos mas fundamentais, entrelaçados com a terra e entre si, sustentando tudo o que cresce. São passado e presente, mas acima de tudo, são a promessa de um futuro onde ninguém fica de fora.

Porque enquanto houver compartes, haverá terra viva.